2 de nov. de 2013

Leveza (Autor Italo Calvino)


No capítulo dedicado à leveza, Italo Calvino comenta sobre a leveza e o peso na escrita. Trata da leveza como uma qualidade e a traduz como a retirada do peso da narrativa e da linguagem.
No início de sua carreira como escritor buscava uma identificação entre o que acontecia no mundo e o seu ritmo de escrever, uma sintonia entre o dramático e o grotesco, relatando os fatos da vida, sua matéria prima.

Utiliza a mitologia como forma de melhor explicar a leveza na narrativa. O heroísmo de Perseu é descrito ao decepar a cabeça da Meduza, voar sobre sandálias aladas e não olhar jamais a face da Górgona – observando-a de maneira indireta através do reflexo do espelho ou de seu escudo. Depois da decapitação a relação entre Perseu e Meduza não se desfaz, ele não abandona a cabeça, e em casos extremos, a utiliza como arma contra seus inimigos. A força de Perseu está na recusa da visão direta, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros em que reside. Em “Metamorfoses”, Ovídio descreve a alma de Perseu que, após matar o monstro marinho e libertar Andrômeda, lava as mãos. E mesmo depois de matar a Meduza, deposita sua cabeça em um ninho de folha e algas, com a face voltada para baixo, para não deixá-la em areia áspera e solo duro. Atitude que demonstra a leveza, e revela a gentileza de um verdadeiro herói. De igual modo, Eugenio Montalle, em seu poema “Piccolo Testamento”, demonstra leveza, ao tratar de uma visão apocalíptica sem deixar de valorizar traços que se contrapõem à catástrofe.

Os exemplos de leveza raramente serão tirados da vida contemporânea. Em seu romance “A insustentável leveza do ser”, Mila Kundera trata do peso do viver, da condição de opressão humana comum a todos nós – mesmo os mais afortunados – demonstrando que na vida, tudo que escolhemos pela leveza rapidamente se mostra insustentável. Então, cada vez que a vida se torna pesada devemos também olhar as coisas sob outra ótica, tal como Perseu voa para outro espaço – não como uma fuga mas como uma mudança de ponto de observação.

Na ciência, é possível encontrar relatos em que o peso tenha sido excluído. Na informática, a leveza é comparada com o poder do software em relação ao peso do hardware. Outro exemplo ocorre na Segunda Revolução Industrial que não oferecia maquinários enormes, mas revolucionou com a tecnologia dos bits de informação que corriam em circuitos eletrônicos. As máquinas pesadas só funcionavam se submissas à leveza dos bits.

Na poesia, “De rerum natura” é vista como a primeira obra poética com uma percepção de leveza. Lucrécio usa o que Ítalo define como poesia do invisível, pois não trata apenas da matéria, antes, utiliza-se da poesia de forma infinita e imprevisível como se tudo fosse passível de se tronar um poema: raios de sol, grãos de areia, sopro do vento. A tudo atribui caráter físico. Tanto em Lucrécio como em Ovídio, a leveza é algo que se cria no processo de escrever.

Em Decamerão, Boccaccio nos apresenta o poeta Guido Cavalcanti, que para Calvino, oferece a imagem que deveria ser o símbolo do novo milênio. “O salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza.” Calvino usa Cavalcanti para esclarecer que a leveza está associada à precisão e à determinação. Afirmando que há uma leveza do pensamento, que deixa o homem com o olhar atento, e que recusa uma visão direta e óbvia das coisas.

Dante têm pensamentos semelhantes ao de Cavalcanti, encontramos palavras, motivos e conceitos comuns entre eles, porém, Dante mostra a existência da leveza sempre em oposição ao peso, atribuindo exatidão a tudo, tanto ao peso das coisas como da leveza.

No decorrer dos séculos, a literatura caminha por duas oposições: uma faz da linguagem um conjunto sem peso “flutuando sobre as coisas como uma nuvem”; a outra aplica o peso à linguagem, agregando solidez e espessura aos corpos e as sensações. Assim, temos que saber admirar igualmente a linguagem ornada – de peso – e a linguagem dotada de leveza.

Calvino destaca que para vivenciar a leveza na linguagem é necessário ter experiência do valor do peso. E assim, usando as ideias de Cavalcanti, cita três interpretações diferentes para a leveza:

- Um despojamento da linguagem que pudesse permitir aos significados uma estabilidade pouco densa. 

- A narração relacionada com um raciocínio atravessado por itens que assegurem a abstração.

- A formação de figuras visuais leves.

Em Shakespeare, vamos encontrar a leveza quando o personagem Mercúcio faz a seguinte citação: “Estás amando; pede a cupido as asas emprestadas/e paira acima dos vulgares laços” contradizendo Romeu que havia acabado de dizer: “Sob o peso ingente desse amor pereço”. O primeiro personagem fala do amor como um sentimento leve, suave, enquanto o segundo considera o amor um enorme peso, que traz sofrimento. A leveza também pode ser vista quando Mercúcio entra em cena e explica sua filosofia relatando o sonho da “Rainha Mab”:

Feitos de pernas longas de tarântulas

São os raios das rodas do seu carro;

De asas de gafanhotos, a coberta;

As rédeas são da teia de uma aranha;

De úmidos raios de luar, o arreio;

De osso de grilo, o cabo do chicote

E o rebenque de um fio de cabelo.

Em “Sonho de uma noite de verão”, observamos uma modulação lírica e existencial que permite contemplar o próprio drama como se visto de fora, dissolvendo em melancólica ironia. Um tipo de gravidade sem peso, uma relação particular entre melancolia e humor que coloca em dúvida o eu e o mundo, com toda a rede de relações que o constitui. No drama Shakespereano “O Príncipe da Dinamarca”, a melancolia é vista como um conjunto de humores e sensações:

... mas é uma melancolia muito particular, composta de vários elementos simples, extraída de vários objetos, e de fato as inúmeras lembranças de minhas viagens, com frequência ruminadas, envolvem-me numa tristeza ressumada de graça.

A leveza de um texto tem o poder de suavizar a realidade, e colocar beleza e poesia onde não existe. Calvino compara as palavras à leveza de um átomo.  Cyrano, o primeiro poeta do atomismo nas literaturas modernas, celebra a unidade de todas as coisas, uma combinação de figuras elementares que determina a variedade das formas vivas e vai figurar a leveza, principalmente pelo fato de, em sua fantasia, abordar o problema da gravidade até o ponto de inventar uma série de sistemas para subir à lua.

Giácomo Lepardi, ao discursar sobre o insustável peso do viver, traduz a perfeita felicidade por meio de imagens extremamente leves: pássaros, a voz de uma mulher que canta na janela e principalmente a lua. Os poetas sempre utilizaram a lua para comunicar sensações de leveza, silencioso e calmo encantamento. Leopardi conseguiu aliviar a linguagem de todo seu peso, até torná-la semelhante à luz da lua.

É doce e clara a noite e não há vento,

e calma sobre os tetos e entre os hortos

e pousa a lua, ao longe revelando

serenas as montanhas. [...]



Ó graciosa lua, eu me recordo

que, faz um ano, sobre esta colina,

cheio de angústia, eu vinha contemplar-te:

e pairavas então sobre a floresta

tal como agora a iluminá-la toda. [...]

A literatura como função existencial, ou como a busca da leveza como reação ao peso do viver, pode ser observada no modo em que o Xamã lidava com a precariedade da tribo: ao anular o peso do corpo, era transportado a outro mundo, para outro nível de percepção a fim de encontrar forças para modificar a realidade. Tal como as bruxas que voavam à noite sobre vassouras, exatamente numa época em que a mulher carregava o fardo de uma vida cheia de limitações. A ligação entre a levitação desejada e a privação sofrida é uma constante. As fabulas frequentemente mostram o voo a outro mundo, onde o objeto está à procura de outro reino, muitas vezes distante, mas onde suas necessidades sempre são supridas. O que demonstra que a racionalidade mais profunda deve ser procurada nas necessidades antropológicas a que essa se refere.

 “O cavaleiro da Cuba” de Kafka parte em sua cuba vazia, na busca por carvão. Em dado momento a cuba lhe serve de cavalo e ergue-o à altura do primeiro andar das casas. Ao chegar à carvoaria, a mulher do carvoeiro se recusa a ouvi-lo, e expulsa o cavaleiro. Então a cuba voa para longe até se perder nas Montanhas de Gelo. A cuba vazia representa privação, desejo e busca. O transporte para outro reino é a privação que se transformou em leveza. Porém, as Montanhas de Gelo, neste caso, não é um reino onde a cuba encontrará algo para enchê-la.


Sendo assim, esta deve ser a expectativa para o novo milênio, encontrar somente o que é possível levar: a leveza.

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