No
capítulo dedicado à leveza, Italo Calvino comenta sobre a leveza e o peso na
escrita. Trata da leveza como uma qualidade e a traduz como a retirada do peso
da narrativa e da linguagem.
No
início de sua carreira como escritor buscava uma identificação entre o que
acontecia no mundo e o seu ritmo de escrever, uma sintonia entre o dramático e
o grotesco, relatando os fatos da vida, sua matéria prima.
Utiliza
a mitologia como forma de melhor explicar a leveza na narrativa. O heroísmo de
Perseu é descrito ao decepar a cabeça da Meduza, voar sobre sandálias aladas e
não olhar jamais a face da Górgona – observando-a de maneira indireta através
do reflexo do espelho ou de seu escudo. Depois da decapitação a relação entre
Perseu e Meduza não se desfaz, ele não abandona a cabeça, e em casos extremos,
a utiliza como arma contra seus inimigos. A força de Perseu está na recusa da
visão direta, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros em que
reside. Em “Metamorfoses”, Ovídio descreve a alma de Perseu que, após matar o
monstro marinho e libertar Andrômeda, lava as mãos. E mesmo depois de matar a
Meduza, deposita sua cabeça em um ninho de folha e algas, com a face voltada
para baixo, para não deixá-la em areia áspera e solo duro. Atitude que demonstra
a leveza, e revela a gentileza de um verdadeiro herói. De igual modo, Eugenio
Montalle, em seu poema “Piccolo Testamento”, demonstra leveza, ao tratar de uma
visão apocalíptica sem deixar de valorizar traços que se contrapõem à
catástrofe.
Os
exemplos de leveza raramente serão tirados da vida contemporânea. Em seu
romance “A insustentável leveza do ser”, Mila Kundera trata do peso do viver,
da condição de opressão humana comum a todos nós – mesmo os mais afortunados –
demonstrando que na vida, tudo que escolhemos pela leveza rapidamente se mostra
insustentável. Então, cada vez que a vida se torna pesada devemos também olhar
as coisas sob outra ótica, tal como Perseu voa para outro espaço – não como uma
fuga mas como uma mudança de ponto de observação.
Na
ciência, é possível encontrar relatos em que o peso tenha sido excluído. Na
informática, a leveza é comparada com o poder do software em relação ao peso do
hardware. Outro exemplo ocorre na Segunda Revolução Industrial que não oferecia
maquinários enormes, mas revolucionou com a tecnologia dos bits de informação
que corriam em circuitos eletrônicos. As máquinas pesadas só funcionavam se
submissas à leveza dos bits.
Na
poesia, “De rerum natura” é vista como a primeira obra poética com uma
percepção de leveza. Lucrécio usa o que Ítalo define como poesia do invisível,
pois não trata apenas da matéria, antes, utiliza-se da poesia de forma infinita
e imprevisível como se tudo fosse passível de se tronar um poema: raios de sol,
grãos de areia, sopro do vento. A tudo atribui caráter físico. Tanto em
Lucrécio como em Ovídio, a leveza é algo que se cria no processo de escrever.
Em
Decamerão, Boccaccio nos apresenta o poeta Guido Cavalcanti, que para Calvino,
oferece a imagem que deveria ser o símbolo do novo milênio. “O salto ágil e
imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que
sua gravidade detém o segredo da leveza.” Calvino usa Cavalcanti para
esclarecer que a leveza está associada à precisão e à determinação. Afirmando
que há uma leveza do pensamento, que deixa o homem com o olhar atento, e que recusa
uma visão direta e óbvia das coisas.
Dante
têm pensamentos semelhantes ao de Cavalcanti, encontramos palavras, motivos e
conceitos comuns entre eles, porém, Dante mostra a existência da leveza sempre
em oposição ao peso, atribuindo exatidão a tudo, tanto ao peso das coisas como
da leveza.
No
decorrer dos séculos, a literatura caminha por duas oposições: uma faz da
linguagem um conjunto sem peso “flutuando sobre as coisas como uma nuvem”; a
outra aplica o peso à linguagem, agregando solidez e espessura aos corpos e as
sensações. Assim, temos que saber admirar igualmente a linguagem ornada – de
peso – e a linguagem dotada de leveza.
Calvino
destaca que para vivenciar a leveza na linguagem é necessário ter experiência
do valor do peso. E assim, usando as ideias de Cavalcanti, cita três
interpretações diferentes para a leveza:
-
Um despojamento da linguagem que pudesse permitir aos significados uma
estabilidade pouco densa.
-
A narração relacionada com um raciocínio atravessado por itens que assegurem a
abstração.
-
A formação de figuras visuais leves.
Em
Shakespeare, vamos encontrar a leveza quando o personagem Mercúcio faz a
seguinte citação: “Estás amando; pede a cupido as asas emprestadas/e paira
acima dos vulgares laços” contradizendo Romeu que havia acabado de dizer: “Sob
o peso ingente desse amor pereço”. O primeiro personagem fala do amor como um
sentimento leve, suave, enquanto o segundo considera o amor um enorme peso, que
traz sofrimento. A leveza também pode ser vista quando Mercúcio entra em cena e
explica sua filosofia relatando o sonho da “Rainha Mab”:
Feitos de pernas longas de
tarântulas
São os raios das rodas do seu
carro;
De asas de gafanhotos, a coberta;
As rédeas são da teia de uma
aranha;
De úmidos raios de luar, o
arreio;
De osso de grilo, o cabo do
chicote
E o rebenque de um fio de cabelo.
Em
“Sonho de uma noite de verão”, observamos uma modulação lírica e existencial
que permite contemplar o próprio drama como se visto de fora, dissolvendo em
melancólica ironia. Um tipo de gravidade sem peso, uma relação particular entre
melancolia e humor que coloca em dúvida o eu e o mundo, com toda a rede de
relações que o constitui. No drama Shakespereano “O Príncipe da Dinamarca”, a
melancolia é vista como um conjunto de humores e sensações:
... mas é uma
melancolia muito particular, composta de vários elementos simples, extraída de
vários objetos, e de fato as inúmeras lembranças de minhas viagens, com frequência
ruminadas, envolvem-me numa tristeza ressumada de graça.
A
leveza de um texto tem o poder de suavizar a realidade, e colocar beleza e
poesia onde não existe. Calvino compara as palavras à leveza de um átomo. Cyrano, o primeiro poeta do atomismo nas literaturas
modernas, celebra a unidade de todas as coisas, uma combinação de figuras
elementares que determina a variedade das formas vivas e vai figurar a leveza,
principalmente pelo fato de, em sua fantasia, abordar o problema da gravidade
até o ponto de inventar uma série de sistemas para subir à lua.
Giácomo
Lepardi, ao discursar sobre o insustável peso do viver, traduz a perfeita
felicidade por meio de imagens extremamente leves: pássaros, a voz de uma
mulher que canta na janela e principalmente a lua. Os poetas sempre utilizaram
a lua para comunicar sensações de leveza, silencioso e calmo encantamento.
Leopardi conseguiu aliviar a linguagem de todo seu peso, até torná-la
semelhante à luz da lua.
É doce e clara a noite e não há
vento,
e calma sobre os tetos e entre os
hortos
e pousa a lua, ao longe revelando
serenas as montanhas. [...]
Ó graciosa lua, eu me recordo
que, faz um ano, sobre esta
colina,
cheio de angústia, eu vinha
contemplar-te:
e pairavas então sobre a floresta
tal como agora a iluminá-la toda.
[...]
A
literatura como função existencial, ou como a busca da leveza como reação ao
peso do viver, pode ser observada no modo em que o Xamã lidava com a
precariedade da tribo: ao anular o peso do corpo, era transportado a outro
mundo, para outro nível de percepção a fim de encontrar forças para modificar a
realidade. Tal como as bruxas que voavam à noite sobre vassouras, exatamente
numa época em que a mulher carregava o fardo de uma vida cheia de limitações. A
ligação entre a levitação desejada e a privação sofrida é uma constante. As
fabulas frequentemente mostram o voo a outro mundo, onde o objeto está à
procura de outro reino, muitas vezes distante, mas onde suas necessidades sempre
são supridas. O que demonstra que a racionalidade mais profunda deve ser
procurada nas necessidades antropológicas a que essa se refere.
“O cavaleiro da Cuba” de Kafka parte em sua
cuba vazia, na busca por carvão. Em dado momento a cuba lhe serve de cavalo e
ergue-o à altura do primeiro andar das casas. Ao chegar à carvoaria, a mulher
do carvoeiro se recusa a ouvi-lo, e expulsa o cavaleiro. Então a cuba voa para
longe até se perder nas Montanhas de Gelo. A cuba vazia representa privação,
desejo e busca. O transporte para outro reino é a privação que se transformou
em leveza. Porém, as Montanhas de Gelo, neste caso, não é um reino onde a cuba
encontrará algo para enchê-la.
Sendo
assim, esta deve ser a expectativa para o novo milênio, encontrar somente o que
é possível levar: a leveza.
Um comentário:
Ameiiiiiii
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